Neste livro que respira como um recém nascido, ventre sem fim onde surgem os abecedários, em negros enxames que o vento dispersa, sou a pura substância de tudo o que existe. Luminosa coroa da sombra, raíz que se nutre do vazio, conhecimento imóvel e final.
Cada centímetro de minha carne é este livro santo, que contém o segredo de minhas infinitas transformações. Óvulo onde murmura o eco do grito ancestral, vertente inesgotável das infinitas memórias. Não sei nada, não posso nada, não sou nada. Quem vive em mim se não sou eu?
Montanha solicitada por amanheceres e ocasos, brotando serena da névoa, o poder da fé me pertence. Ponto onde se acumulam as mil causas de cada ação imaginável, o poder da atenção me pertence. Olho nascente vendo os destinos que se cruzam na teia do acaso, o poder do assombro me pertence.
Também me pertence o poder de estabelecer uma ponte sobre o abismo que separa os opostos, aquilo que não é nem um pólo, nem outro, nem ambos. Sino surdo ao seu próprio vibrar, sombra que não conhece a luz da qual se origina, cruz onde se funde o invisível, presa reservada ao Supremo Caçador.
Em minha vulva imaculada a sombra de seu gélido membro me oferece o prazer sublime que a tudo aniquila. Carne morta na qual as palavras são como fogo, como martelo golpeando uma parede que é puro mel, como leito onde canta o fantasma de uma noiva, como olhos cegos nos quais o segredo se deixa ver.
Segredo aberto, luz para os cegos, memória que avança rumo ao esquecimento. Se sou nove portas, te abrirei aquela onde chame com a calma de um morto que entra em seu ataúde. Quem sou? Que é minha vida? Quais são minhas obras? Por que abaixo da sombra de meu manto de mármore os vícios prosperam? Por que minha carne pudorosa cai embriagada na dependência da ave que se exibe? Por que os potros invadem meu templo com seus encantos lascivos?
Não há um momento em que não seja tentada a depreciar os preceitos, arrancar de minha boca toda palavra sagrada, ultrajar o ingênuo que deseja uma face transparente, despistar a verdade para gozar do mel da mentira, abrigar o mal para vencer a retidão do caminho.
Não escolho: me escolhem. Não falo: através de mim algo fala. Não amo: por meu coração se derrama a carícia intangível. Não dito a lei: navego na luminosa loucura do presente. Para além do tempo e do espaço está minha consciência: o invisível da escritura contém o visível de minha carne. Há um corpo mais além do corpo onde mora o verdadeiro eu.
No santuário deserto, ascendo das entranhas da terra. Compreendendo a riqueza das ruínas, entre os escombros acaricio as pedras.
Fonte: Yo, el Tarot / Jodorowsky